Nelson Peixoto
Maçaricos, aves e crianças, brincavam lado a lado no Igarapé do Espírito Santo em Coari–AM. Um local de rica vida natural e brincadeiras, o igarapé variava com as cheias e secas, proporcionando pesca, caça e momentos marcantes como a brincadeira de “maçaricos colossais” na lama. O texto lamenta a perda da inocência e da natureza devido à exploração do gás do Rio Urucu e faz um apelo para proteger as crianças e o meio ambiente.
Da torre da Igreja de Sant’Ana, vemos a extensão do Igarapé do Espírito Santo, estendendo-se da matinha das carreiras dos barcos em conserto até as proximidades da Capela de Santo Afonso, situada no “Alto do Bode”. Situo o leitor na cidade de Coari, Am.
Da “makira” (rede de dormir) na torre da Igreja, se vê, em épocas de enchente, as igaras (canoas), entrando e saindo do igarapé, driblando o mureru. As águas vêm do Rio Solimões, desdobram e formam o igarapé do Pêra. Pelo lado desta aventura, as águas chegam até a barragem que as impedem de correr mais adiante, quando em outros tempos ancestrais, provavelmente, seguiam até o retorno ao lago de Coari, por outro trajeto.
O sucesso da Igarapé (rio que corre) se deve a barragem servindo de estrada para ir ao bairro do Espírito Santo. São águas represadas que se povoaram com mureru por cima e de um zoológico de peixes exóticos debaixo da lâmina de água, que sobe e desce, permitindo que até camarões se criem. Fundo lameado para o habitat de muçuns, bodós e comedores de barro.
Certamente, as cobras e flores, por lá, se encontravam, entre as vitórias régias sobrantes. Dizem os mais antigos que essas cobras se esticavam e se faziam de pontes para incautos passarem de uma margem a outra. “Era um tempo em que até as crianças brincavam na toca das serpentes”, como se lê no sonho do profeta Isaías, 11,8 – “A criança de peito brincará sobre a toca da cobra, e a já desmamada meterá a mão no ninho da serpente”.
A topografia do leito do igarapé é disforme. Quando a seca chega, as partes altas e mais plainas surgem e servem de campo de futebol para a garotada que foge da uka (casa) para se lambuzar de lodo.
Conheço um atleta entre outros, apelidado por mim de “maçaricos colossais” que só deixavam os olhos sem lama, de fora, para se disfarçar dos poucos marrecos e bacuraus que dormiam. Mas era a noite que acontecia a farra de matança desses inocentes pássaros que se ofuscaram com as lanternas. Depois da bola rolar e os jogadores deslizaram na lama, os corajosos ainda iam mergulhar por debaixo do monturo aquático de mureru e erguer a cabeça, onde os inocentes aves maçaricos engrossaram as pernas. Sonhavam em ser águias e conseguiram.
Certa vez, um maçarico humano, amigo meu, desafiou os colegas para ver quem passava mais tempo mergulhado na lama. Ao sair do lamaçal, formou-se um batalhão de gente parecido com espantalhos ambulantes. O povo apavorado veio para o barranco, armado de espingarda. Mas o Maçarico chefe sinalizou do meio dos espantalhos, passou a mão no rosto e identificou-se, negociando a paz. As espingardas baixaram e começaram as palmas. Disse-me a polícia que essa brincadeira só cessou quando apareceu um “mijacão” nos pés da garotada. Mas curados, tornaram-se pescadores de camarão “micuim”, desses pequeninos que os maçaricos apreciam. Coitados dos famintos que tiveram de levantar voo por falta de comida. Perderam a vez para o pescador e caçador de bacurau noturno.
Maçarico passarinheiro, fazedor de bolotas de barro para abater pássaros no voo, tinha até uma “padaria” artesanal no fundo do quintal. Acho que tinha também uma churrasqueira que exalava o perfume triste dos mártires das baladas. Passada a fase de matador de passarinho para comer, havia outros engenhos de criança sapeca. De dia, redes artesanais, feitas de sacos de cebola serviam de arrastão.
O maçarico-mor, chegava em casa com aplausos da mãe. Ela esquecia, no meio da tarde, de mascar tabaco, para preparar o camarão do jantar. Caída a noite, só havia coragem para matar bacurau, na praia grande na frente da cidade, voltar para a uka (rede) e dormir cedo debaixo do mosqueteiro.
No dia seguinte, bem cedo, já estava acordado e indo com pai entregar o “pão nosso de cada dia” para seus clientes.
Nessa relação do pai com o pão, que o maçarico-mor aprendeu a repartir a vida e encontrar a Deus na natureza e na fome dos que não tem o que comer.
Em nome das crianças que brincavam livres nas águas e viveram uma infância feliz, chega uma lágrima nos olhos
Hoje, muitas crianças pobres estão sem brincar na natureza, tal como foi com ele e sua geração de moleque, nas andanças e nos mergulhos no igarapé do Espírito Santo. Fica gravado o registro criativo da época, antes da descoberta do gás do Rio Urucu, que sujou de sangue as águas mansas, onde a infância de Coari fazia a festa da vida.
Vamos trabalhar para que cada criança se torne uma águia, no céu azul, depois da fase de maçaricos espertos na infância.
Jamais viver nas águas sujas de sangue e exploração!
Jamais sejam violentadas em seu corpo e em sua alma!
SEMPRE JUNTOS no Enfrentamento do Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes.
18 de maio de 2023.
Leia mais em:
O boi de França e o boi de Ioiô
Um Corpo Santo e as serpentes na brisa leve e na água agitada
Entre águas e sonhos: uma tragédia anunciada – Botos
Como se Preparar para o Miss Coari – 2017
4 comentários em “Os maçaricos do igarapé do Espírito Santo têm nomes”
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