Manuella Dantas
A autora relembra sua infância em Coari e as aventuras com sua bicicleta Brisa rosa, presente de seu pai em 1986. Após passeios noturnos pela cidade, um acidente lhe deixou uma cicatriz e encerrou sua relação com a bicicleta. A história mistura nostalgia e a lembrança de uma época marcada por diversão e pequenos riscos.
Essa semana fui tomar café com uma amiga em uma cafeteria que nunca tinha ido. O lugar era bem aconchegante, com uma decoração de toque retrô.
Confesso que o sabor do café não agrada meu paladar, mas eu simplesmente adoro a atmosfera da “pausa para um café”. Momento que pode variar entre o flerte com um pensamento inútil e o caos da reflexão sobre as responsabilidades cotidianas.
Depois do café, ao pagar a conta, me deparo com um dos itens de decoração do lugar: uma bicicleta do modelo Brisa, da Monark.
Meus olhos devem ter brilhado nessa hora e minha cicatriz no supercílio deve ter se escondido de medo. Aliás, ela só existe por causa da minha antiga relação com esse acessório de cestinha e duas rodas.
O ano era 1986, eu tinha 10 anos e ganhei do meu pai minha primeira bicicleta grande. E ela era rosa, e ela tinha uma cestinha, e ela tinha varão curvado, e ela tinha garupa.
Deus, para meus olhos de criança, ela era a bicicleta perfeita! Provavelmente meu pai comprou aquela bike parcelada no crediário das Casas Pernambucanas e deve ter sido um esforço tremendo enfiar a mão no bolso para me dar aquele mimo.
Dali em diante só andava de brisa, pra cima e pra baixo. Assim que escurecia eu já estava pronta pra pedalar. Quem viveu em Coari nessa época sabe que andar de bicicleta à noite, era uma das nossas brincadeiras favoritas. Acho que só perdia para o banho na escadaria. Começava meu passeio descendo a ladeira da garagem da casa do Seu Dimas, dava a volta por aquela área da frente do sobrado em que morávamos, passava pelas bancas de churrasco da Cetê e da Aurila, acelerava em direção à praça.
É bem verdade que não dava pra correr tanto naquelas ruas de tijolos da década de 80, mas no meu imaginário infantil, eu era uma verdadeira ciclista.
Cruzava toda a praça, dava uma volta até a entrada do cais, pela esquina do BASA, passava pela loja do Seu Messias e me preparava para subir a XV de Novembro. Nessa hora o Seu Jurandir já havia parado com o serviço do carro de som e o fusca marrom já estava descansando em frente à casa dele. A partir dali, já sem fôlego, eu começava a empurrar a minha brisa.
Seu Enedino e Dona Maria Olinda, já estavam na calçada encerrando o expediente da drogaria.
– Cadê a Simonete? Perguntava ela.
– Tá na Escola. Eu respondia ofegante.
– Diga que mandei um abraço!
Mas à frente eu acenava para Dona Edite que normalmente conversava com alguém na soleira da sua porta.
Seguia a pé até chegar na rádio, dava uma descansada. Depois rodeava o Progente, passava pelo bar do Seu Manoel Costa, pelo Lopes Braga, pelo Tijuca, dobrava em direção à Cosama e descia zimpada a rua do Seu Zito. Ah! Eu ainda posso sentir o vento batendo no meu rosto enquanto descia a 5 Setembro, freando levemente até chegar lá embaixo, já quase na beira do rio, onde meu avô costumava ficar sentado com minha avó, em uma cadeira de macarrão azul escuro.
Certo dia, estava nessa rotina de passeio noturno com a minha brisa rosa-de-cestinha-de-varão-curvado-de-garupa, quando passo na frente de casa e meu avô já estava na janela do sobrado, fazendo o famoso hã-hã dele, que indicava que nosso tempo de passeio na rua estava findando.
Ouvi um belo e sonoro:
– Manuella, sobe!
Aqui nesse texto não dá para sentir o tom da junção daquelas letras, mas só eu e meus irmãos sabíamos o que aquele tom representava. Não que meu avô fosse violento ou ríspido, não. Era só aquela moral que os adultos tinham com a gente naquela época mesmo.
Nesse dia eu estava acompanhada do meu irmão, Naninho, e da minha amiga Ráifran, que morava a um quarteirão de distância da minha casa. Na tentativa de estender um pouco mais a brincadeira, avisei ao meu avô que iríamos deixar a Ráifran em casa e já fui dobrando a esquina, sem dar a ele a chance de proibir a famosa “última voltinha”.
No retorno, eu e meu irmão resolvemos apostar uma corrida. Nós subimos nas nossas bicicletas e a Ráifran ficou na nossa frente com os braços abertos e deu a largada, assim como naqueles filmes em que o mocinho aposta um racha com o bandido, e a mocinha, segurando um lenço quadriculado preto e branco, autoriza a arrancada.
E lá fomos nós, de pé na bike para pedalar mais rápido, naquela penumbra da má iluminação da rua Ruy Barbosa, tendo o rio como companhia, desviando de cachorros e dos buracos, rumo à linha de chegada.
Quando eu passei um pouco do Bereano, derrapei! Em segundos minhas mãos espalmaram no chão e saíram arrastando naquela areia fina que recobria as pontas dos tijolos desnivelados da rua. Em seguida, meus joelhos também foram se encontrando com o chão, como se estivessem em uma dolorosa competição com o resto do meu corpo para ver quais os membros se ralavam mais. Por último e não menos sofrido, dei de cara com a sarjeta e abri uma brecha no supercílio. Só quem já levou um corte nessa região sabe o potencial de jorrar sangue que ela tem. Assim, logo fiquei com a blusa toda ensanguentada.
Um desconhecido me ajudou a levantar, e me levou no colo até o primeiro lance da escada do sobrado. Meu irmão catou meu chinelo e trouxe a bicicleta, certo de que o que nos aguardava seria pior do que qualquer ralado.
Subi o segundo lance de escada engolindo o choro e pensando no carão que íamos pegar do vovô. Minha mãe estava dando aula e minha avó viajando, então, não havia ninguém que intercedesse por mim.
Ele estava sentado em uma cadeira de embalo, quando me viu toda suja de sangue. Só ouvi um seco:
– Vai pa-ra o ba-nhei- ro!
Assim, mesmo, sílaba por sílaba sendo emitida com uma pausa que parecia durar uma eternidade.
Lá ele lavou meus machucados de uma forma nada delicada e pegou o terror da minha infância: o Bálsamo Mundial. Bálsamo Mundial era um remédio bem escuro, que vinha numa garrafa de vidro bem pequena e a dor que ele causava só se equiparava a infusão de Jucá que a Dona Maria Bastos passava nas nossas feridas. Ainda posso ver aquele líquido caindo em um bolo de algodão que ele colocou na minha testa e grudou com um pedaço enorme de fita adesiva para estancar o sangue.
Depois desse curativo, ainda vinha o outro carão da mamãe que ia ouvir do vovô que eu não vim pra casa na hora que ele mandou. No dia seguinte, graças a Deus minha avó chegou e desgrudou cuidadosamente aquela fita que por pouco não levou minha sobrancelha embora. A bicicleta ficou com a cestinha amassada, a roda empenada, o guidom meio torto. Eu fiquei com uma cicatriz e medo de andar em bicicleta grande. E assim acabou o romance com a minha brisa rosa-de-cestinha-de-varão-curvado-de-garupa.
Manuella Dantas
Autora da crônica
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2 comentários em “Minha Brisa Rosa”
Que crônica legal!
Sammer é Sanmara também tiveram essa brisa cor de rosa. A da Sammer teve um final triste, pois foi esmagada por um caminhão de entregas, em Manaus. Foi um chororô só. Enfim, eles pagaram e compramos outra.
Linda a história da sua brisa.👏👏👍
Além das inesquecíveis aventuras, pelas ruas do centro histórico de Coari, o carinho dos dois avós nos faz lembrar de outras épocas de criança. Embora destaque as aventuras com a Brisa rosa, a autora consegue desbloquear memórias afetivas no leitor, que passou muitas vezes pelos mesmos cenários e via os mesmos personagens. A descrição do modo de falar do avô, e o carinho da avó, ao examinar o curativo, um dia depois do ocorrido, demonstra como nossos pais e avós nos educaram, e como também foram educados.. Magnífico! E o bálsamo mundial é outro clássico!