João Melo
Escritor, poeta e pesquisador das culturas indígenas.
Nesse texto, observaremos um relato que mistura história com lenda, em que o personagem principal é a cobra grande.
Diz a lenda que, no final do século XVII e início do século XVII, antes do Frei Samuel Fritz invadir com suas canoas e sua fé (cristã) as águas do lago de Coari, os povos indígenas Catauixi, Iriju, Juma, Mura, Miranha e outros, viviam como Tupana (Deus) os colocou no mundo: quase nus, mas felizes e de acordo com a cosmovisão de cada um: os povos guerreiros guerreavam; os canoeiros remavam; os agricultores plantavam e todos festejavam as vitórias e as safras em festas comunais de acordo com os quartos das luas.
Naqueles tempos a alimentação básica era a caça, a pesca, os frutos e raízes dos pomares silvestres; e os alimentos produzidos na roça-de-toco, como: farinha, tapioca e pé-de-moleque.
O açúcar era retirado das colmeias das abelhas e o sal das cinzas do barro queimado dos barreiros das antas, porcos e macacos, os carboidratos da floresta e das águas.
A vida era naturalmente quase um paraíso.
O lago de Coari, maior beleza natural da região, era rico de pescados de todas as espécies, daí a densa povoação humana no seu entorno.
Essa magnífica região é formada pela desembocadura de três grades rios: Coari, Urucu e Aruã, que de tão grande, dá a negritude do lago o aspecto de uma enseada do mar num fim de tarde.
Porém, quando a seca era grande, tornava-se muito perigoso atravessá-lo, dada sua extensão e por causa de uma enorme serpente que morava num poço central do lago; ela atacava as canoas ou igarités e sumia com seus tripulantes.
Corda de cabelos
Catauari, líder maior do povo Catauixi, se dispôs a resolver o problema. Saiu em sua canoa de casa em casa para pedir a todos, homens e mulheres, que deixassem seus cabelos crescer até a região da panturrilha, quando poderiam cortá-los à navalha de paxiúba e, assim, os enviassem para a aldeia Patuá, sua moradia.
Nessa época, homens e mulheres deixavam os cabelos crescer como sinal de formosura. Para que os cabelos crescessem fortes, Catauari recomendou que os untassem com óleo natural de castanha, abundante nas margens do lago.
Após dois anos de coleta de cabelos, os homens e mulheres da aldeia Patuá começaram a trançar um cabo grosso, de aproximadamente duas polegadas de espessura e com mais de cem metros de comprimento.
De uma peça de madeira paracuuba (o âmago mais duro da região), Catuari mandou retirar um galho grosso, em forma de V irregular, ficando a parte mais grossa com dois metros de tamanho e a parte mais curta com 40 cm.
Colocou a mesma sobre o fogo brando por duas noites para ‘curar’ a madeira. Pediu que os guerreiros fossem ao mato caçar porcos catetos e trazê-los vivos, que fizeram e retornaram com quatro presos às varas.
O velho tuxaua observou que a cada sete anos tinha uma cheia e uma vazante muito grande. Este era o ano de seca grande.
Amarrou o cabo de cabelos ao pé de uma frondosa samaumeira no porto da aldeia Patuá e mandou todos os guerreiros se pintar para a guerra. Chamou o pajé Kaywé (o homem santo da aldeia) e pediu que defumasse o cabo.
Quando a lua escura chegou, ele prendeu na extremidade do cabo a armadilha de madeira com um porquinho, caçado e mantido vivo até esse momento.
Os canoeiros deixaram a embiara no largo do lago, preso a uma boia de madeira molongó, que a ajudava a flutuar.
O primeiro porco, após várias horas de luta contra as correntes, pereceu. Na outra noite, repetiu-se a tentativa, que, mais uma vez, fracassou. A cobra não apareceu e outro porquinho morreu.
Na terceira noite os canoeiros e guerreiros, armados de tições e gambás fizeram grande alarido nas proximidades do poço que diziam ser a moradia da cobra.
Após, colocaram dois porcos atados à armadilha para que se movimentassem com mais intensidade nas águas para chamar a atenção da cobra.
Próximo da meia-noite a ‘bicha’ boiou e se aproximou dos porcos, rodeou-os e verificou se estavam sadios. (Cobra não come animal morto ou doente – faro da mãe natureza).
De uma vez só, engoliu os dois catetos junto com o ardil de paracuuba. E deu a primeira correria ou estica para se livrar do cabo de cabelos.
O cabo entesou e balançou a centenária sumaumeira onde estava ancorado. Todos os guerreiros correram para suas canoas no intuito de finalizar a pesca da cobra-grande.
Catauari, do alto de seus 60 anos, ordenou: “Fiquem todos no barranco, longe da área de extensão do cabo; se ele arrebentar pode matar um ou mais”.
E todos o obedeceram.
A cobra corria de vez em quando, se aquietava um bocado e em seguida dava um esticão no cabo, fazendo o terreno ao redor da sumaumeira estremecer. É isso se deu até o meio-dia do dia seguinte. Quietude e correria.
Árvore gigante
A árvore gigante, símbolo da Amazônia, vergou seu majestoso caule no rumo das águas pela força da cobra. E, de repente, o cabo ficou sem tensão, livre da pressão da cobra.
O povo não acreditou no que viu. Após tanto esforço a cobra havia escapado. Recolheram o que sobrou do cabo. E cada um tomou o rumo de suas casas, sem condições de entender o que ocorrera.
Uma semana se passou. O rio ainda estava secando. Um indígena passando com sua canoa pela ponta da praia da Maresia, avistou a armadilha de paracuuba jogada na praia rasa. Apanhou a mesma e a trouxe para o aceiro da aldeia Patauá.
Catauari, mesmo desanimado, a recebeu e a colocou no pé da samaumeira torta e lá ficou por um bom tempo.
Hoje existe uma velha samaumeira no porto da aldeia Patauá, para lembrar a todos a tentativa do cacique Catauari em pescar a cobra grande.
Os índios velhos da tribo Catauixi juram que ainda é a mesma árvore, vergada desde o dia da pescaria da grande cobra do Lago de Coari!
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7 comentários em “Cobra Grande do Lago de Coari, no rio Amazonas — 2021”
Essa mistura poética, do imaginário e realidade, faz das lendas regionais uma das literaturas mais originais do mundo. O próprio nome do estado, Amazonas, congrega daquela mesma mistura. A cobra não morreu, está adormecida debaixo da cidade, sua cabeça está agasalhada debaixo da catedral de Santana e São Sebastião, assim se ouve dos mais velhos, até hoje…
Quando era criança, sempre ouvi essa lendae, eu acreditava.
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