Simão Pessoa
Segundo Simão Pessoa, a ciranda é uma manifestação cultural tradicional do Nordeste brasileiro que se espalhou para outras regiões do país, inclusive para Nogueira. Em Tefé, no Amazonas, a ciranda é uma expressão cultural importante, que se manifesta em festas e eventos tradicionais.
Quando surgiu, no distrito de Nogueira, em Tefé, por volta de 1898, pelas mãos do mulato pernambucano Antônio Felício, ele próprio mestre cirandeiro e cantador de coco de embolada, a brincadeira era uma curiosa mistura de ciranda tradicional e cordão de bichos.
Os participantes vestiam-se como roceiros, com as damas trajando saias e blusas de fazendinha estampada ou chitão colorido e os cavalheiros de calças curtas, camisas de brim com mangas compridas enroladas até o antebraço e chapéu de palha.
Os personagens principais eram o Chefe, o Subchefe, o Oficial da Ronda, o Padre, o Sacristão, o Soldado, o Velho, a Velha, o Caçador e o Carão.
No enredo surgido em Nogueira, o caçador resolve matar o pássaro carão para satisfazer o desejo de comer a ave cozida, formulado pela sua enjoada mulher que estava grávida.
O carão é um pássaro negro, que vive nas beiras do rio caçando o caramujo uruá e não faz mal a ninguém.
O caçador mata o carão e o casal de velhos, que eram apaixonados pela simpática avezinha, denuncia o crime ao oficial da ronda, que manda o soldado prender o caçador.
O padre e o sacristão são chamados para ouvir a confissão do caçador e, depois de muitas idas e vindas, o carão acaba ressuscitando pelas mãos do padre, por que não havia sido morto de verdade, apenas ferido de raspão pelo tiro.
As músicas da brincadeira incluíam tanto músicas tradicionais de ciranda (“Ciranda, ô ciranda / vamos todos cirandar / vamos dar a volta e meia / vota e meia vamos dar”) quanto de rodas de coco pernambucano adaptadas para a nossa região (“Corre-corre meu cavalo / meu cavalo é corredor / vai buscar a minha amada / na santa paz do Senhor / Corre-corre meu cavalo / meu cavalo é alazão / vai buscar a minha amada / no meio do barracão / Corre-corre meu cavalo / meu cavalo é singular / vai buscar a minha amada / no seringal do Juá”.
Essa ciranda amazonense que nasceu em Nogueira e depois rapidamente se espalhou pelas comunidades próximas do município de Tefé, como Coari, Maripi, Fonte Boa, Amaturá, Javari, Tabatinga, Caiçara (atual Alvarães), São Matias, Boa Vista e Tocantins, deve muito do seu sucesso às inovações introduzidas na brincadeira por um cidadão chamado Isidoro Gonçalves de Souza.
Nascido no dia 6 de dezembro de 1884, em Nogueira, Isidoro era o terceiro filho do casal Theodolindo Gonçalves de Souza e Theodolinda Araújo e Souza. Ele aprendeu a falar a língua geral (“nheengatu”) com sua bisavó, uma índia legítima da tribo dos uairiris-surimãs, tendo vertido para esse idioma diversas poesias, contos, fábulas, desafios de violeiro e hinários, incluindo o Hino Nacional brasileiro que foi batizado de Hino Tetamauara.
Ele também aprendeu espanhol com a peruana Madalena do Nascimento e Souza, com quem casou em 1922, aos 38 anos. Dessa união nasceram os filhos Theodolindo Surimã, Luís Ataualpa, José Silvestre, João Bosco, Danilo, Marcelo, Margarida Maria, Macrina, Isidoro, Maria Rosa, Helena Maria e Tarcisio Augusto.
Durante a adolescência, Isidoro Souza participou como brincante da ciranda de Antônio Felício durante vários anos. Depois de adulto, já morando em Tefé, onde exercia o cargo de professor e diretor do Seminário São José, começou a montar uma nova ciranda, que passou a ser conhecida como “Ciranda de Tefé”, a partir da introdução de novos personagens.
A Constância foi inspirada na quadrilha francesa para homenagear as debutantes tefeenses. O Cupido era uma forma de homenagear os casais de namorados que frequentavam a pracinha da cidade.
A Mãe Benta era uma homenagem à baiana Sebastiana, mulher de Antonio Felício, considerada a melhor doceira do município.
Os personagens Galo Bonito, seu Manelinho e seu Honorato foram criados pelos sobrinhos de Isidoro, Odonei e Temístocles Alencar, inspirados em moradores da cidade.
Galo Bonito – porque vivia dando em cima das franguinhas locais – era o apelido de Valentim, que se considerava o “Don Juan de Tefé” e, de tão exigente na escolha das parceiras, morreu no caritó.
Seu Manelinho era um regatão que vivia embriagado e gostava de contar proezas inimagináveis sobre as suas viagens pelos rios da Amazônia.
Seu Honorato era um famoso rezador da região, que dominava como poucos os segredos das ervas medicinais.
Da ciranda de Antônio Felício, o professor Isidoro Souza manteve os cordões de entrada e de saída, o puxa-roda e o auto do pássaro carão (sendo que agora o pássaro era “ressuscitado” por uma “garrafada” de ervas milagrosas preparada pelo rezador Honorato), mas deletou o padre e o sacristão (provavelmente para evitar problemas com os padres da Congregação do Espírito Santo, responsáveis pelo Seminário São José, que ele dirigia) e o casal de velhos.
Os novos personagens ganharam músicas específicas e a Ciranda de Tefé desenvolveu a seguinte dinâmica cênica:
O cordão de cirandeiros inicia sua apresentação com a cantoria mais conhecida da brincadeira: “Ciranda, ô ciranda / vamos todos cirandar / vamos dar a volta e meia / volta e meia vamos dar / vamos dar a mais e meia / cada qual largue seu par / boa noite, meus senhores / boa noite, autoridades / todos nós vós desejamos / saúde e felicidade / ciranda, ô ciranda / vamos todos cirandar / vamos dar a meia volta / volta e meia vamos dar / vamos dar a mais e meia / cada qual pegue seu par”.
Os cirandeiros começam a cantar o puxa-roda para apresentar seus principais destaques (Cirandeiro, Cupido, Galo Bonito, Constância, Oficial, Subchefe e Chefe).
Os personagens se apresentam ao público e começam a dançar dentro da roda: “Puxa roda, minha gente / que uma noite não é nada / se não dormireis agora / dormirás de madrugada / ô vira ainda e torna a virar / revira comigo, aí sou seu amor / olha o Cirandeiro que na roda entrou / no meio da roda já apareceu / já apareceu no meio da roda / no meio da roda nós queremos ver / olha o Cupido que na roda entrou / no meio da roda já apareceu / já apareceu no meio da roda / no meio da roda nós queremos ver / olha o Galo Bonito que na roda entrou / no meio da roda já apareceu / já apareceu no meio da roda / no meio da roda nós queremos ver / olha a Constância que na roda entrou / no meio da roda já apareceu / já apareceu no meio da roda / no meio da roda nós queremos ver / olha o Oficial que na roda entrou / no meio da roda já apareceu / já apareceu no meio da roda / no meio da roda nós queremos ver / olha o Subchefe que na roda entrou / no meio da roda já apareceu / já apareceu no meio da roda / no meio da roda nós queremos ver / olha o Chefe que na roda entrou / no meio da roda já apareceu / já apareceu no meio da roda / no meio da roda nós queremos ver /”
Os personagens saem de dentro da roda, enquanto a ciranda faz uma série de evoluções. Tem início a apresentação-solo dos personagens.
Os cirandeiros começam a cantar a música da Constância e ela começa a bailar no centro da roda: “Constância, tu me juraste / Constância, eu te jurei / no jardim das belas rosas / Constância, eu te namorei / amor tanto do meu gosto / só por morte deixarei! / pretendo escolher a noiva / por quem quero me casar / ando a roda escolho a noiva / por quem quero me casar / eu não te quero e tu nem me merece / só a ti, só a ti hei de querer”
A Constância sai da roda. Os cirandeiros começam a cantar a música do Cupido e ele começa a bailar no centro da roda: “Cupido quando nasceu / leite doce apeteceu / por isso o amor é tão doce / no coração que nasceu / Cupido montou um bazar / com ares de mercador / vendia mentiras e intrigas / em troca de beijos de amor / fui ao bazar de Cupido / encostei-me no balcão / para ver se me vendia / um mil réis de compaixão / Cupido subiu a serra / de arco e flecha na mão / Cupido se divertia / flechando nos corações”
O Cupido sai da roda. Os cirandeiros começam a cantar a música do seu Manelinho e ele começa a bailar no centro da roda: “Seu Manelinho quando veio do Pará / Carregadinho de peixe mapará / ele bebe, ele fica chirrado / cai embaixo, meu bem, bem embaixo / carrega em cima, meu bem, bem em cima / ai, Dondom, ai, Dondom / seu Manuel já chegou / já chegou do Pará / Seu Manelinho quando veio de Tefé / Carregadinho de farinha e café / ele bebe, ele fica chirrado / cai embaixo, meu bem, bem embaixo / carrega em cima, meu bem, bem em cima / ai, Dondom, ai, Dondom / seu Manuel já chegou / já chegou de Tefé / Seu Manelinho quando veio de Maceió / Carregadinho de muito mocotó / ele bebe, ele fica chirrado / cai embaixo, meu bem, bem embaixo / carrega em cima, meu bem, bem em cima / ai, Dondom, ai, Dondom / seu Manuel já chegou / já chegou de Maceió / Seu Manelinho quando veio de Coari / Carregadinho de pimenta murupi / ele bebe, ele fica chirrado / cai embaixo, meu bem, bem embaixo / carrega em cima, meu bem, bem em cima / ai, Dondom, ai, Dondom / seu Manuel já chegou / já chegou de Coari”
Seu Manelinho sai da roda. Os cirandeiros começam a cantar a música do seu Honorato e ele começa a bailar no centro da roda: “Minha cabeça me dói / meu corpo doença tem / mandei chamar seu Honorato / pra ver onde é que dói / aqui é que me dói / aqui é que me dói / meu ouvido me dói / meu corpo doença tem / mandei chamar seu Honorato / pra ver onde é que dói / aqui é que me dói / aqui é que me dói / Minha garganta me dói / meu corpo doença tem / mandei chamar seu Honorato / pra ver onde é que dói / aqui é que me dói / aqui é que me dói / Meu braço me dói / meu corpo doença tem / mandei chamar seu Honorato / pra ver onde é que dói / aqui é que me dói / aqui é que me dói”
Seu Honorato sai da roda. Os cirandeiros começam a cantar a música do Galo Bonito e ele começa a bailar no centro da roda: “Meu Galo Bonito / de pena de arara / tu querias roubar, ô ladrão / a menina Mara / Valentim, tintim / Valentim, meu bem / quem casou, casou / que não casou, ficou / quem tiver inveja / faça assim, também / faça assim, faça assim / faça assim, meu bem / meu Galo Bonito / canta de alegria / tu querias roubar, ô ladrão / a menina Luzia / Valentim, tintim / Valentim, meu bem / quem casou, casou / que não casou, ficou / quem tiver inveja / faça assim, também / faça assim, faça assim / faça assim, meu bem / meu Galo Bonito / canta na varanda / tu querias roubar, ô ladrão / a nossa ciranda / Valentim, tintim / Valentim, meu bem / quem casou, casou / que não casou, ficou / quem tiver inveja / faça assim, também / faça assim, faça assim / faça assim, meu bem”
O Galo Bonito sai da roda. Os cirandeiros começam a cantar a música da Mãe Benta e ela começa a bailar no centro da roda: “Mãe Benta, fiai-me um bolo / não posso, senhor tenente / os bolos são de Iaiá / não foram feitos pra muita gente / ananás nascem da serra / bananeira de pendão / do homem nasce a firmeza, da mulher, a ingratidão / quem tiver o seu amor / durma na porta da rua / da pedra faz travesseiro / do sereno, cobertor / ninguém se fia em mulher / mesmo estando ela dormindo / seus olhos estão fechados / e as pestanas estão bulindo”.
A Mãe Benta sai da roda. Os cirandeiros começam a cantar a música do carão e ele começa a bailar no centro da roda até a chegada do caçador. O pássaro é morto pelo caçador e depois ressuscitado pelo seu Honorato: “Já vem chegando o verão / para a morte do carão / ai, ai, ai, para a morte do carão / o carão é um pássaro preto / comedor de uruá / ai, ai, ai, por cima do matupá / dona senhora, me diga / com que se engorda o carão? / ai, ai, ai, gordura de camarão / azeite de coco verde / gordura de camarão / ai, ai, ai, gordura de camarão / cadê meu atirador / pra matar esse carão? / ai, ai, ai, pra matar esse carão / já morreu nosso carão / já morreu nosso carão / ai, ai, ai, já morreu nosso carão”
Depois que o pássaro ressuscita, os cirandeiros começam a cantar a música de despedida: “A ciranda se despede / com a maior satisfação / dando vivas a Santo Antônio / a São Pedro e São João / adeus, prados, adeus, bosques / adeus, moço sonhador / adeus, povo da cidade / e também do interior / ciranda, ô ciranda / vamos todos cirandar / vamos dar a meia volta / volta e meia vamos dar / vamos dar a mais e meia / cada qual pegue seu par”.
Autor: Simão Pessoa
Fonte: Blog do Simao Pessoa
Leia mais em:
Minhas memórias do festival folclórico coariense (1976–1993)
1 comentário em “Da Ciranda Nordestina à Ciranda de Tefé – 1898”
A Ciranda de Tefe se apresentou nos anos 60 no Festival Folclórico do Amazonas, e assim plantou sementes da dança na capital. O cacetinho de Tefe, também deixou sementes na capital, e até hoje são apresentados cordões inspirados na presença das danças de Tefe no cenário do festival de Manaus, ainda nos primórdios do festival do Amazonas.