Eros Divino Maia Alfaia
A crônica Correcampenses x Garantianos, narra a rivalidade entre os bois-bumbás Corre-Campo e Garantido em Coari, marcada por brigas e um episódio de violência em 1989. A retomada do festival em 1993 e a vitória do Corre-Campo geraram reações distintas. A crônica reflete sobre a polarização social, a cultura popular como identidade local e a importância da tolerância para a harmonia.
Atualmente, quando se fala em polarização, vem a ideia da política partidária entre direita e esquerda. Entretanto, na Coari dos anos 80 e 90, existia o conflito de rivalidade entre os jovens habitantes moradores de duas singulares áreas urbanas daquela cidade, naquele tempo, os bairros de Chagas Aguiar, Centro e Tauá-mirim. Ou seja, uma rivalidade cultural que contém história, nome, sobrenome e endereço.
Na época de ensaios, festas e da realização de eventos como a memorável disputa dos bumbás, que eram sediados nos bairros distintos, não se podia trajar as cores e nem usar das estampas dos bois contrários nas áreas de domínio do rival. Corre-Campo era o boi negro das Chagas (vermelho), Garantido, o boi branco do Centro (azul), esse último tinha muitos de seus simpatizantes no bairro de Tauá-mirim. Isso mesmo, você não leu errado, o Garantido de Coari usava azul e branco com um coração azul na testa. Assim sendo, alguns jovens do bairro de Chagas Aguiar não permitiam que os do Centro e Tauá-mirim “invadissem” seu território.
Somente simpatizantes dos times esportivos e, da agremiação do bumbá vermelho, podiam atravessar pela ponte de madeira, ou de catraia pelo igarapé do Espírito Santo, a acessar o bairro exclusivo do vermelho. Enquanto isso, dizia-se no Centro e pelas ruelas do Tauá-mirim que havia iminente “perigo” de se percorrer as ruas das Chagas, desavisadamente. Assim sendo, aquele local findou subjugado pelo Centro. Aos grupos de jovens (principalmente de meninos), que se juntavam para ir às festas, jogar bola nos campinhos no final da tarde, participar das manifestações populares e, até dos inexplicáveis embates de rua, denominavam-se de “Galeras” (ou Chagas Mal).
No Centro, havia temor à “galera das Chagas”, mas não precisava ir muito longe, pois, no Tauá-mirim, havia a turma da “Baixada”. No final da história, o vocábulo findou denominando a multidão que se aglomerava nas arquibancadas das quadras, para torcer por seu boi preferido no festival folclórico da cidade. Assim sendo, cada um tinha sua “galera”. Porém, os torcedores não eram chamados de “galerosos”, eram apenas apaixonados por seus bumbás. A regulamentação das agremiações, nos anos noventa, auxiliou a ressignificação da palavra galera às comunidades.
Com a divertida disputa dos bois, todos (os que simpatizavam com a festa, é claro), passaram a “ser da galera” (da azul, ou vermelha). Havia certa trégua entre os rivais nas noites das disputas oficiais, ou mesmo, nos momentos das competições esportivas, organizadas e realizadas nos extremos das áreas urbanas, principalmente durante os jogos interescolares, entre o colégio de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e a escola João Vieira. Na década de 80, o festival folclórico de Coari era realizado no Centro da cidade, nas dependências da quadra de esportes São José, (da Escola Nossa Senhora do Perpétuo Socorro). Os jovens das Chagas podiam participar, sem o temor de serem atacados pelos rivais. Porém, a folga terminava no instante final das apresentações e jogos.
Então, em 1989 “Correcampenses” e “Garantianos” foram prestigiar o festival para mais um duelo artístico entre seus bois de pano. As arquibancadas eram subdivididas, havia um único lance, que era dividido no meio por um forte cabo daqueles que se amarra a embarcação, no beiradão, para a correnteza não levar. Isso mesmo era só uma corda que separava as torcidas. Do lado direito ficava os torcedores azuis do requintado boi Garantido, do lado esquerdo, totalmente encurralados, os audazes torcedores vermelhos de Chagas Aguiar (reduto do animado boi Corre-Campo). Imaginem essa turma, vestida de encarnado, passando em frente de seus rivais de anil, ou, as provocações, jogadas de um para ao outro, estando uma torcida lado a lado na noite de disputa do festival?
É só lembrar da guerra fria entre os EUA e antiga URSS, não é mesmo? Pois é, era uma verdadeira bomba-relógio, faltava só “isso aqui” para iniciar uma guerra. O boi Garantido venceu a disputa nos anos de 1988 e de 1989, tornando-se bicampeão na categoria. As divisões haviam iniciado após o festival de 1987, porque uma dança moderna, denominada de Balé indígena, foi sagrada campeã ao ter somado mais pontos que os bois e, as outras danças concorrentes. Por isso, em 88 e 89, as categorias foram redefinidas. Infelizmente nunca aconteceu um festival em 1990. O Corre-Campo, insatisfeito com os resultados das duas últimas disputas (de 88 e 89), abandonou o evento como forma de protesto.
Em 1989, além do Corre-Campo, na escola João Vieira, havia a dança do Lampião, que disputou título com um outro Lampião da escola Thomé de Medeiros Raposo, mas o do Thomé venceu. Mil novecentos e oitenta e nove não foi um bom ano para o João Vieira, nas competições folclóricas. Muitos componentes do Lampião do Thomé eram do Centro da cidade e Tauá-mirim, por isso, uma semana após o festival terminar, os brincantes organizaram uma comemoração pela vitória, seria realizada na própria sede do Thomé. Dirigiram-se a pé do Centro da cidade ao bairro de Chagas para participar da comemoração. A maioria era torcedor do Garantido.
De repente, enquanto caminhavam em direção à escola, meio que do nada, resolveram cantar as toadas do boi azul pelas ruelas do território do boi vermelho… Foram cutucar a onça com uma vara muito curta. Não deu outra, a comemoração não aconteceu mais, pelo menos naquela tarde, porque o estado em que os brincantes se encontravam, horas depois, não lhes permitia comemorar a mais nada. Metade daquela turma findou dando entrada no ambulatório da Unidade Mista de Coari, foram vítimas de espancamento, causados por pauladas e pedradas. Naquela época, as ruas de alguns bairros da cidade ainda eram calçadas de tijolos e muitas casas tinham seus quintais cercados por estacas ou tábuas.
Os correcampenses, quando ouviram as toadas do boi azul, sendo cantadas em um coro, nos ares de seu território vermelho, rapidamente municiaram-se com pedaços daqueles materiais que se usava no calçamento das ruas e demarcação de quintais. Encurralaram os garantianos em uma viela do bairro, causando o que os prontuários mostravam no atendimento dos pacientes no ambulatório do hospital, naquela tarde de julho de 1989. Enquanto isso, na delegacia de polícia, havia alguns sendo fichados por agredirem, fisicamente, alguns transeuntes nas ruas do bairro de Chagas Aguiar — as vítimas eram jovens, os brincantes do Lampião do Thomé. A partir daquele episódio, somente em 1993, com a administração do saudoso ex-prefeito, Odair Carlos Geraldo, o festival de boi-bumbá voltaria a acontecer.
O evento foi transferido do Centro da cidade à quadra da Escola Dom Mário, no bairro de Itamarati. Corre-Campo e Garantido disputaram mais uma vez. Garantido chegou esmerado com suas nobres cores, mas seu tema era complexo — História de Boi. Da Grécia e Egito antigos ao boi Prata Fina de Coari, do saudoso Ioiô, foi o enredo do azul. Chegou com uma nova identidade, apresentou-se como “Rei Garantido”; Corre-Campo, encarnado, embora não fosse bicampeão como o rival, conquistou uma legião de torcedores por toda a cidade, inclusive no Centro e no Tauá-mirim. Após a carreata histórica, empreendida pelos correcampenses, semanas antes do festival acontecer, passando por todas as principais ruas da cidade, inclusive pelas as dos bairros rivais, estava seguro com a autoestima dos torcedores e diretoria elevada.
À noite de vinte e seis de junho de 1993, Corre-Campo se apresentou com o tema Cultura Indígena. Foi simbólico, com inovações alegóricas e personagens inesquecíveis no cordão, inclusive a sua linda rainha, que marcou o festival. A torcida estava apaixonada, confiante e muito animada. Foi o primeiro a se apresentar. Garantido sofreu com problemas técnicos, o maior deles foi o desabamento do portal de entrada, antes de iniciar sua apresentação. A situação abalou o psicológico da torcida, diretoria e brincantes. Sentiram-se constrangidos pelo infeliz incidente, ainda mais, perante o olhar das autoridades presentes e dos torcedores rivais, que os observavam do outro lado da quadra. Naquele ano havia arquibancada separada para cada torcida.
No outro dia, no final da tarde, após a apuração da última noite da disputa, o resultado consagrou o boi Corre-Campo campeão do festival. Foi uma explosão de amor dos torcedores encarnados, no bairro de Chagas Aguiar. A vitória era inédita. Então, teve comemoração com passeata pelas ruas do bairro, fogos, batucada, toada e até o pajé evoluindo na faixada da escola João Vieira. Os itens individuais, tribos, batuqueiros, todos emocionados de tanta alegria, fizeram uma grande celebração. Enquanto isso, do outro lado da cidade, em frente à prefeitura municipal, uma fogueira de inquisição consumia a carcaça de um boi, o que foi confeccionado para representar o antigo Prata Fina, na noite anterior. Era um ritual de protesto a derrota sofrida, julgavam injusta a vitória do contrário.
Perante as labaredas, que lambiam o anoitecer da cidade, juraram nunca mais participar de nenhum festival para disputar com o Corre-Campo. A promessa foi cumprida, há mais de trinta anos nunca mais se ouviu o som dos tambores, de nenhum desses bumbás, pelos festivais folclóricos da cidade de Coari. A juventude de bom humor, dos anos noventa, conjugou uma época de “harmonia” e amizade pelas vias daquele evento, produzido, principalmente, pelos movimentos artísticos dos bois-bumbás. O folclore, enquanto manifestação da diversidade popular, é via dispersadora de várias mazelas sociais e empreendedora de mútua colaboração. À polarização atual é necessário uso de tolerância e inteligência emocionais.
Crônicas dos antigos festivais de bois-bumbás da cidade de Coari.
Eros Divino Maia Alfaia
Garantianos Garantianos Garantianos Garantianos Garantianos Garantianos Garantianos Garantianos Garantianos Garantianos Garantianos GarantianosGarantianos Garantianos Garantianos Garantianos Garantianos Garantianos Garantianos Garantianos Garantianos Garantianos
Leia mais em:
Um dia de Santana em Coari em uma Igreja Ministerial
Os maçaricos do igarapé do Espírito Santo têm nomes
O boi de França e o boi de Ioiô
Fátima Acris – 50 Anos de Nossa Primeira Miss Amazonas
6 comentários em “Correcampenses x Garantianos”
Eu não conhecia essa rivalidade Coari e se, parabéns pela memória preservada nesse conto. Tenho um carinho por essa cidade.
Pingback: Corpos em Movimento: Workshop Gratuito de Dança em Coari – Cultura Coariense
Espero ter contribuído com o resgate de memórias sobre a rivalidade do bumbás coariensses dos anos 80 e 90 porque antes dessa época não ha registros sobre outros contrários em Coari. Hoje, em todo o Estado, Garantido e Caprichoso são os dois maiores expoentes sobre rivalidade de bumbás do nosso tempo. A disputa inicia hoje, dia 28 de junho. E que vença o melhor em Parintins!
Pingback: Das ruas de tijolo à escadaria: um passeio pelas memórias de Coari – Cultura Coariense
Pingback: Minha Brisa Rosa – Cultura Coariense
Pingback: Os Carnavais de Coari - Década de 1980 – Cultura Coariense