Antônio Cantanhede
Nesse texto podemos observar a narração da Lenda Caripira, uma das lendas mais clássica de nossa literatura Coariense.
Entre os indígenas que habitaram as selváticas regiões do rio Itanhauã, em Coari, destacavam-se, por sua operosidade, os da tribo Tucanos. Eram eles hábeis caçadores e valentes guerreiros, dedicando-se, também, ao trabalho de cultivar a terra. De boa índole, jamais tomaram parte ativa nas tropelias contra os desbravadores da floresta virgem, que orlava esse belo e caudaloso rio, cuja tortuosidade lhe dá aspecto interessante. É tão sinuoso o Itanhauã que, ao navegá-lo, ora temos o Sol adiante, ora por de trás, à direita ou à esquerda.
Grandes distâncias, transpostas pelo caminho de suas águas, em dias e mais dias de viagem, são vencidas por terra em poucas horas, tirando-se, como é de costume dizer em linguagem regional, as voltas do rio. É frequente ouvir-se, bem nitidamente, como se fora próximo, ruídos e estrondos, de madeiras caídas a grandes distâncias.
Foi à margem desse rio de águas esverdeadas que viram a luz da vida os dois irmãos, Pau-darco e Caripira, criaturas nômades e destemidas. Criaram-se como dois heróis de lenda, tais as suas aptidões para a caça e para a pesca, por isso, sem pouso certo, entretinham-se na exploração da flora e da rede hidrográfica de Coari, do que resultou serem ótimos auxiliares dos aventureiros, primitivos exploradores e ocupantes daquelas paragens.
De força muscular prodigiosa, era Pau-darco o escudo do irmão, ágil manejador do arco e da flecha certeira.
Cada qual tinha a sua especialidade, o seu modo de agir: Pau-d’arco, após irritar o inimigo da selva, vencia-o a golpes de sua musculatura férrea, raramente servindo-se do seu cacete da madeira que lembrava o próprio nome; o irmão gozava em abater a caça à distância, mortalmente ou não, conforme seu desejo no momento. E sempre foram felizes nas suas pelejas, no seio da floresta inculta.
De uma feita, quando os dois irmãos subindo o rio Itanhauã se separaram, Pau-darco, como de costume, desafiara uma onça para lutar. Infelizmente, porém, quando o animal dá o salto de investida ele se desequilibra não podendo utilizar-se do cacete. A fera, enraivecida, crava-lhe no crânio os dentes aguçados, dando-lhe morte instantânea.
Era um animal forte, belo e ágil, o adversário do malogrado caçador.
Ao grito, único que soltara este, acode o irmão que, após cortar a grande volta do rio, dentro de poucos minutos, presenciava o banquete da fera, a refestelar-se nas carnes sangrentas e ainda quentes de Pau-darco, seu irmão e companheiro.
Retesado o arco, a flecha parte e enfia-se nas entranhas da onça que baqueia junto ao corpo daquele que acabara de matar.
Louco de dor, Caripira sangra o inimigo abatido e tira-lhe o coração, que devora. Depois, parte sem rumo, a soltar aos quatro ventos o seu grito de guerra. Desde então, ele não para, na caçada as onças até que estes rareiam.
Sua história torna-se conhecida da tribo, que o lamenta. Não encontrando ele mais com quem lutar na mata virgem, passa o tempo a flechar os incautos habitantes das águas do rio Itanhauã. Lança a sua flecha para o alto, para vê-la descer, após ter descrito graciosa curva no ar e ir cravar-se no casco da tartaruga, que boiara, confiante, para tomar respiração.
Passam-se luas e mais luas, e, afinal, a tristeza leva o desolado caçador a entregar sua alma a Tupã, seu Pai, seu Criador.
Revoluteando e adejando sobre a sepultura de Caripira, aparecera aos olhos dos supersticiosos Tucanos, um gavião de boas proporções, o qual, por vezes se elevava nos ares e das alturas precipitava-se às águas do Itanhauã, trazendo ao emergir, preso às suas possantes garras, algum peixe descuidoso.
Então, como homenagem ao valente que se fora, deram os Tucanos ao gavião-pescador, cinzento-pedrês, até esse momento conhecido pelo apelido de “Rabo trocado”, o nome do heroico “Caripira”.
NOTA:
Caripira — Gavião-pescador, muito conhecido na Amazônia. Diz-se que é a encarnação dum pescador infeliz. Do alto essa ave se precipita ao seio das águas, de onde arrebata o peixe, que leva até grande altura, soltando-o de lá, para alcançá-lo ainda no espaço.
Itanhauã — ou Itá-induá — Pilão de pedra.
Tupã — Deus.
Leia Mais sobre a Cultura Coariense:
Tio Antunes – Contos de Erasmo Linhares – 1995
Quebra-Queixo — Erasmo Linhares — 1999
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