Em Outras Palavras, PSD Versus UDN
Durante a viagem, além do livro de Edmar Morel, tive acesso a um documento verdadeiramente interessante. Tratava-se da vida de Alexandre Montoril, Prefeito de Coari durante a era Vargas, ao longo, portanto, de minha infância e adolescência. Tal documento me pareceu da maior importância, pelo fato de ter sido escrito pelo próprio Montoril, e em trovas, no mais autêntico estilo do tradicional cordel nordestino. Satisfazia, assim, curiosidade que me acompanhava desde criança: quem fora aquele homem de tão forte presença e que a tanta gente soubera cativar, a muitos, também, chegando a contrariar? Amigo e compadre de meu pai, padrinho que era de um de meus irmãos, Alexandre Montoril foi dos administradores que mais fizeram por Coari. Há quem diga ter sido ele o mais dinâmico de todos os prefeitos, levantando prédios públicos aqui e ali, inclusive o Grupo Escolar, onde estudei; abrindo ruas, construindo pontes (como esquecer a ponte “Álvaro Maia”, exatamente a ponte pintada de verde, que ficava quase atrás de minha casa e que tinha, bem na frente, um pé de muçambê?). Construída sobre um braço do igarapé do Espírito Santo, que só aparecia por ocasião da subida das águas, a ponte dava acesso ao “Alto do Bode”, onde tinha início a Rua Gonçalves Ledo, naqueles tempos, talvez a mais longa de todas as ruas de Coari, indo até o cemitério, onde meu pai foi sepultado.
Sobre o Grupo Escolar em que estudei, denominado “Francisco Lopes Braga”, cujas iniciais lhe davam o epíteto de Farinha Lambuzada com Banana, jamais ouvi qualquer alusão ao personagem que lhe dera o nome. E somente muito depois, nas pesquisas que fiz objetivando o presente trabalho, tive informação de que fora homenagem prestada por Montoril a seu primeiro professor.
Nas obras que, a seu modo, planejava, era ele próprio quem dirigia os trabalhos de construção, fazendo-se presente em todas elas, orientando uma atividade e outra, chamando a atenção de um e de outro operário. Austero, firme no falar e no agir, Capitão Montoril, como o chamávamos, oficial da Polícia Militar do Amazonas que era, impunha respeito e jamais me lembro de ter visto alguém que, em sua presença, não se sentisse impressionado, até mesmo pela “força” de seu olhar, como tantas vezes ouvi dizer. Consta que o próprio Major Deolindo Dantas (Major da Guarda Nacional), incontestável chefe político da UDN, que lhe fazia renhida oposição, ao defrontarem-se, em encontro ocasional, armas em punho, olhos nos olhos, logo relaxaram os ânimos sem que qualquer palavra fosse dita por qualquer deles. Esse fato, mesmo que dele não se tenha testemunho, bem poderá ter ocorrido, mercê da forte personalidade daqueles homens, lideranças autênticas, ambos nordestinos; Montoril, cearense, nascido em Assaré, inteiramente dedicado, com absoluta austeridade, à vida pública; Deolindo, paraibano de velha cepa, ao que se sabe, da famosa família Dantas, da qual um membro participaria da história pátria, por ter posto fim à vida de João Pessoa, um dos pretextos para o revolucionário movimento de 1930, que trouxe Vargas ao poder.
Na política, Major Deolindo situava-se na ala conservadora, senhor que se tornara de muitos bens, principalmente seringais e castanhais, para muitos, de origem nebulosa, até mesmo em razão da prática extrativista que caracterizava a economia amazônica, fortemente marcada pelo impiedoso sistema do aviamento, causador de muita injustiça e de indevidas apropriações. Nos últimos anos de sua vida, mais certo na última década, Major Deolindo encontraria inteira consonância com o que era e tão bem representava, integrando as fileiras da UDN, partido que fazia rancorosa oposição a Vargas, de quem Montoril, era fiel representante. Seu sonho político, entretanto, que outro não era senão, a qualquer custo, derrotar Montoril, jamais logrou realizar. Quando muito chegou a eleger deputado estadual seu filho mais novo, Deolindo de Freitas Dantas, também conhecido por Dandi, orador de grande fôlego, que vi, certa vez, no coreto em frente à Prefeitura (que fizeram do velho coreto?) desancar seu principal e único desafeto político, pondo em prática insultuosa e provocante oratória, de pronto rechaçada por Montoril que, subindo ao coreto sob aplausos de seus seguidores, respondeu às invectivas e diatribes do jovem e fogoso contendor.
De qualquer modo, coube ao velho líder Deolindo a glória de, pela primeira vez, dar a Coari a oportunidade de contar com dois representantes na Assembleia Legislativa do Estado, fato, ao que me consta, jamais repetido. Entretanto, ainda nesse caso, houve empate. É que Montoril, não deixando por menos, também se elegeu Deputado Estadual.
Não se pense que, nas trilhas seguidas por um e outro, principalmente por Deolindo, tivessem suas atitudes qualquer sentimento político-social; em outras palavras, alguma mais séria preocupação de cunho ideológico. Àquela altura, nenhuma prática ou postura dos que detinham o poder ou dos que por ele lutavam, poderia caracterizar-se como de esquerda ou de direita, na acepção que hoje se dá àquelas correntes de comportamento político-ideológico. Os que os seguiam, marcados, geralmente, por inarredável fanatismo, ou estavam de um lado ou do outro, num sempre odiento e cultivado maniqueísmo político-pessoal, em que predominava, com absoluta primazia, o desejo de derrotar, de vencer o inimigo. Parece-me ter sido sob esse prisma que, reciprocamente, se olhavam os desafetos. Autêntica manifestação de fortes egos em acirrada e constante disputa, nada mais que isso.
Assim, de um lado, o Prefeito. Politicamente, ou melhor, partidariamente, filiado ao PSD, partido criado por Vargas para abrigar boa parte da elite nacional, embora demonstrasse sensibilidade social, principalmente em razão das práticas populistas então na moda, muitas delas, sem dúvida, introduzindo sérias alterações no status quo então vigente (Velha República). De qualquer forma, e mesmo sendo homem de classe média e, portanto, de moderados recursos, não deixava de representar a oligarquia que, no âmbito nacional, sempre estivera à frente das grandes decisões políticas, graças ao poder econômico de suas principais lideranças.
Do outro lado, estava o chefe político da UDN, partido nitidamente elitista, abrigo de descontentes políticos nacionais e, da mesma forma que seu principal oponente, sobretudo no interior do País, veraz representante do coronelato. Confundiam-se, entretanto, nos interesses comuns, de modo geral econômicos o que, a rigor, não era o caso de Montoril e Deolindo. A disputa pelo poder econômico em Coari ocorrera bem antes da era Vargas, anterior, portanto, a Montoril, quando, ao que se sabe, já se fizera economicamente forte o poder de Deolindo Dantas. A propósito, muitas teriam sido as contendas levadas a efeito com tradicionais desafetos, como teria sido o caso, dentre outros, do famoso Coronel Lucas de Oliveira Pinheiro, que encerrara suas atividades em Coari, economicamente abatido por ele, Deolindo, para quem teria perdido grande parte de seringais e castanhais.
Politicamente, como já vimos, jamais logrou maior êxito. A reviravolta de 30 e a consequente chegada de Montoril, na condição de interventor, possivelmente constituíram seu maior obstáculo.