Os OLHOS DA MOÇA PARECIAM FALAR. Toda a força de um desejo desenhando-lhe na alma a imagem do que seria a vida se ele ousasse entendê-la. Mas a covarde atitude do homem a quem se entregaria ao primeiro chamado aumentava-lhe a angústia, roubando-lhe a esperança. Doía-lhe a indiferença, jamais ousara falar-lhe de seus sentimentos, e a ninguém confiara o segredo. Seus olhos, porém, em constante cismar, registravam o anseio, tormento de todas as horas, de todos os instantes. Sentia-se vencida. Os dias, as horas, os minutos, passando, e ela, presa, submissa àquela ideia de realizar- se, de viver.
Diariamente o via, pertinho, ao alcance dos braços. Entre os dois, no entanto, a barreira. Um mundo de convenções impedindo a passagem. Muralha. E um suspiro de ansiedade, profundo, meloso, escorrendo-lhe da alma, naquele desejo de ocupar o lugar reservado a outra; no querer desempenhar o papel que outra, ocasionalmente, desempenhava. Bem que deveria dizer tudo, provocar-lhe a reação. Mas tinha medo.
Nem mesmo as férias foram capazes de devolver-lhe a tranquilidade. O mar, a praia, tudo de bom que ali havia, falava de sua ausência. E aquela ideia fixa como a cor da pele: ele. Em tudo, ele. A distância sugerindo saudade. Vazio na alma. A vida sem nenhuma significação. A solidão inspirando tédio, quase desespero. Nos sonhos, o irreal imitando a vida e a fugaz sensação de felicidade. As coisas tomando formas diferentes. Os personagens dos livros de cabeceira, misteriosamente, tomando-lhe as feições. E tudo diferente do real. Ele, pedindo-lhe perdão pelos dias perdidos. Roçando-lhe o corpo quente de desejos, trêmulo de ansiedade, fazendo-lhe cócegas; mordendo-lhe os lábios em fúria de macho faminto. E, por tudo aquilo, a vida resumindo-se num átomo de tempo. A eternidade sintetizada naquele instante de alumbramento, de plena e definitiva realização. Pronto! Desvendado o mistério da esfinge. Destruída a muralha. Vencera, finalmente. Que mais desejar? À distância de um palmo, dois olhos fitos nos seus, furando- lhe a alma, entrando. Penetrando-lhe o íntimo. Descobrindo tudo. Os olhos dele… Até que enfim!… Súbito, porém, desconcertante gargalhada enchendo-lhe os ouvidos. Não! Não podia entender. A vida não podia parar ali. E saltando- lhe aos olhos, a figura de um palhaço triste, arrependido, brincando, displicentemente, com uma rosa. Os olhos do palhaço fitos nos seus. Um sem-número de olhos indiscretos, assistindo à cena. E todos rindo. Vontade de fugir, de correr. As pernas, trôpegas, impedindo-lhe a fuga. E no chão, abandonada, uma pétala vermelha. De repente, uma bota de sete léguas esmagando-a. Como justificar que se pisasse numa pétala de rosa? E o palhaço, triste, fazendo rir, sem nenhuma intenção de fazer rir. Quem lhe entenderia os gestos? Quem, porventura, poderia entendê-lo, vendo-o assim, tentando esconder sob as botas a pétala caída? Não. Ninguém deveria ouvir. Nem ver. Mas todos riam. O mundo inteiro ria. E o palhaço, incompreendido, saindo de cena. Fugindo, escondendo-se.
A moça, lembrando o sonho interrompido, continuava o desejo. Um dia, a certeza do impossível e o último gesto na renúncia total do ser. Para que lhe servia a vida? Um apito estridente anunciando pressa. Um quarto de hospital e um balão de oxigênio inventando vida. As mãos trêmulas do médico desenhando arabescos, num mundo cheio de imagens disformes, confusas. Passos ligeiros de anjos de carne, mensageiros de vida. Zoada. E as mãos trêmulas do médico lutando pela vida. Por que a insistência? Na verdade, lutavam contra ela. Todos contra ela. Um padre, chamado às pressas, falando-lhe ao ouvido, perguntando coisas que nunca dissera a ninguém. Mas não adiantava perguntar-lhe nada. Era tarde. Por que não a deixavam em paz? Estava vencida, derrotada. Os dedos do médico, tatuando o espaço, pareciam mil dedos movimentando endiabradas marionetes. E um coro de muitas vozes cantando pedaços da marcha nupcial. Projetando-se a distância, a figura esguia de um anjo sem asas. O balão de oxigênio enchendo e secando, naquele ir e vir ritmado e constante… O anjo transformando-se em palhaço, procurando esconder o rosto, procurando esconder-se. Fugindo. A mesma covardia de sempre. Longe, bem distante, a lembrança vestindo-se de infância e, finalmente, perdendo-se, inteira, no inconsciente.
Os dedos do médico, cansados, dizendo não em gestos apressados. Pedaços de preces, saindo da boca dos anjos de carne. Todos, de uma só vez, negando a vida. E o palhaço voltando à cena, brincando com uma lágrima que deixava cair descuidadosamente…
O balão de oxigênio, parando, anunciava o fim. O mundo continuava exatamente o mesmo. Mais uma pétala emurchecida, esmagada. E o homem preso. Nada mais que isso. Irremediavelmente preso…