JAVARY tinha o seu pouso às margens do igarapé. Morava sozinho e nunca teve medo de nada. Contava dezoito anos e trabalhava por conta própria. Durante o dia, sumia-se na mata a retalhar seringueiras e a recolher nos porongos, o látex que lhe dava dinheiro. De noite, tomava da flauta de bambu, sentava-se no terreiro junto ao fogo e, tocava até que o sono viesse. Do mato então surgia uma pequena cobra preta e se lhe punha defronte. Aí ficava a ouvi-lo, enrodilhada, quieta. Quando ele parava a música ela ia-se embora, para voltar na noite seguinte. Era-lhe a única companheira naquele ermo de mundo, nos confins do Brasil, no imenso e misterioso Amazonas. Ele aprendeu a estimá-la como a um ente humano. Tocava para satisfação de ambos. Às vezes, varava a noite para aumentar o seu prazer. Ela vinha de manso e enrodilhava-se no lugar de sempre. Ele no toco de castanheira e ela a pouca distância.
No fim da safra, Javary descia o Purus e ia vender a borracha em Coari. Todos os anos o mesmo percurso, a mesma luta. Na última viagem, foi avisado pelos parentes de sua convocação para o serviço militar. Deveria seguir para Manaus quanto antes.
E foi.
Um ano durou sua contribuição à pátria. Durante esse tempo, não se apartara da flauta de bambu. No quartel divertia-se e aos companheiros com a música exótica dos índios de sua terra. Vez por outra, recordava-se do rancho, do igarapé e da pequena serpente. Tocava com mais amor, mais inspiração, mais tristeza. Como era estranha a maneira como a cobrinha o escutava! Dir-se-ia um ser humano apaixonado pela música. Ela vinha coleando macio como se temesse assustá-lo. Depois ficava à distância vacilante, trêmula como uma namorada inexperiente. A língua em forquilha, lambia o ar como se lhe saboreasse a melodia. Os olhinhos muito pretos, moviam-se com impressionante arritmia, num gozo histérico de mulher insatisfeita.
Às vezes tinha-lhe medo, apesar do seu pequeno tamanho. Algo interior o conduzia a um receio vago, inexplicável que se traduzia no pulsar rápido do coração e num abalo repentino dos nervos. Um pavor infantil, mas era sempre um pavor. Sem embargo acostumara-se a ela, à sua presença à hora das saudades. Interessante, não havia dúvida. O diabo da cobra parecia mulher. Devia ser fêmea, a danada. Quando se afastava movia-se com graça, num colear rebolante de grã-fina de cidade grande. Esquisito tudo aquilo! Punha-se a recordar das histórias de fadas que ouvira cm criança. Não seria ela uma fada? Talvez o fosse. Por isso tinha-lhe mais amor, mais respeito.
Dez anos eram passados, quando ele regressou a Coari. Logo depois despedia-se dos amigos e parentes com destino ao pouso do igarapé. Tinha-lhe muitas saudades, não mais podia viver outra vida. Do ranchinho já nada mais havia que não os esteios carcomidos e a trempe de pedra a um canto. Em poucos dias levantara outro igual no mesmo ponto.
Naquela noite havia luar. Noite impregnada de tristeza poética, sacudida pelo canto das aves noturnas. Javary tomou da flauta e tocou. Continuou tocando até que um ruído estranho o fez parar. Vinha daquele lado donde outrora surgia de manso a pequenina cobra preta. Entrou a recordar. Que lhe teria acontecido durante todo aquele tempo? Poderia estar viva ou, quem sabe? Talvez houvesse sucumbido às garras de alguma ave de rapina. Era tão pequena… teve-lhe pena e saudades também.
Mas, que monstro seria aquele? O ruído aumentava. Galhos partidos, o mato se curvando ao peso de um corpo colossal, ruído de folhas secas amassadas. Levou a flauta à boca e tocou. Não era medo, que não o conhecia. Um derivativo qualquer até que o perigo se esclarecesse. Sim, porque a imensa floresta amazônica e a profundeza de seus rios encerram muitos perigos, muitas surpresas e também maravilhas que noutras terras não há. Os dedos moviam-se como os de um autômato, enquanto os olhos fitavam de modo estranho, algo que se aproximava rastejando. Que seria aquilo? Não mais teve dúvidas. Era a boiuna, a serpente gigante do Amazonas. Estava condenado, não adiantava fugir. Nunca acreditara na lenda da cobra grande, do tamanho de um navio e mais grossa que um barco. Deus do céu, a boiuna existia! Ali estava a legendária cobra preta, a boiuna dos grandes rios, o terror dos índios da região. O monstro veio vindo, veio vindo, de manso como se não desejasse perturbar o artista. Bem defronte do velho toco de castanheira enrodilhou-se, pôs a cabeça por cima da rodilha e ficou a escutá-lo. Foi aí que Javary reconheceu a frágil serpente de outros tempos. Os modos eram iguais, iguais os trejeitos, a mesma maneira de fitá-lo com doçura. Passou de uma melodia a outra. Continuou tocando, tocando sem descanso. Depois parou. O monstro se moveu com impaciência. De novo levou a flauta aos lábios e voltou a tocar. Ela ficou quieta a ouvi-lo. Javary tocava agora sua música predileta que ainda não havia executado. Notou que o corpo da serpente se retorcia. Depois começou a contrair-se e a se distender no compasso da melodia. Verdadeiras vibrações nervosas de humano significado, sensações bem femininas de voluptuoso prazer.
O moço começou a experimentar um aperto no coração. Angústia e impaciência por um estado d’alma que se prolongava indefinidamente. Que lazer? Tocar a noite inteira? Novamente lhe veio a ideia de fuga. Impossível… seria morte certa. Pela primeira vez na vida teve medo. E como o medo é penoso. . . continuou tocando, tocando sempre.
Devia ser de madrugada, quando a Boiuna deu sinais de impaciência. Um tremor histérico cm todo o corpo. A língua bipartida, tremeluzia em fibrilações nervosas. A rodilha gigantesca foi-se desfazendo. A enorme cabeça dirigiu-se para o moço assombrado. Tocou-lhe os pés e subiu. Lambeu-lhe o rosto com erotismo. E depois, numa série de pequenos estremecimentos, enroscou-se lhe no corpo. Circulou-o inúmeras vezes, cobrindo-o totalmente. Em seguida começou a apertar. Javary estava sendo estrangulado aos poucos, pelos carinhos de um gigante. Respirou com dificuldade, o ar faltando, faltando. As vistas se tornando baralhadas, escuras.
Na cabeça, uma pressão esquisita, penosa. Quis gritar, não o pôde. Perdeu os sentidos.
E a Boiuna continuava apertando, apertando, num amplexo ansioso de insatisfação. Os olhos brilhavam como nunca. A língua em forquilha, movimentava-se com rapidez crescente, enquanto um tremor desordenado lhe sacudia o corpo inteiro. Javary sucumbiu por fim. No auge da paixão, ela matara de amores, o companheiro inseparável das noites mornas do Amazonas. E não mais o deixou até que morresse também. Abraço mortal que traduziu toda a imensidão de uma saudade acumulada, numa ausência angustiosa.
E até hoje, ainda lá se veem, às margens do igarapé, os fragmentos de um drama selvagem, mas de sentido muito humano.
Os nativos evitam aquelas paragens, onde em redor de um grande fogo azulado, espíritos maléficos entoam estranha sinfonia.
Revista Vida Doméstica – fevereiro de 1951.