O Soldado da Borracha

Coari

Francisco Vasconcelos

O grito do seringueiro Valdemar ecoou floresta adentro, fazendo calar os ruidosos sons da bicharada noturna. Cearense, acostumado à dureza dos sertões nordestinos, aquele homem era um dos que passaram a viver isolados na misteriosa e, para muitos, fantasmagórica hiléia, lá no “centro”, como era costume falar das regiões mais centrais e distantes daquele mundo sem fim da Amazônia Ocidental produtora de borracha. Para ali fora atraído pela colorida propaganda espalhada Brasil afora, o verde e o amarelo da bandeira nacional predominando na policromia de bem elaborados cartazes; as estradas de seringa, certinhas, limpas de quaisquer obstáculos; as seringueiras enfileiradas, uma pertinho da outra, em linha reta, era só cortar. Na verdade, riscar a madeira e logo ver o leite jorrar e seguir o sulco aberto na casca do ubertoso caule, até alcançar a tijelinha de flandres estrategicamente colocada a alguns centímetros abaixo. Que poderia haver de melhor e mais certo?

Valdemar lembrava tudo aquilo com grande indignação e maior tristeza. Por que caíra na esparrela de acreditar em tamanha mentira? Fora enganado, sim. De qualquer modo, aquela escolha o livrara de bandear-se para o cangaço que, à época, embora já sem força, ainda constituía atração e alguma esperança para a moçada de seu tempo, ele, um quase adolescente ainda. Que outro futuro poderia ter no agreste sertão onde nascera e onde vivia?

— Vou, mãe. Vou, sim, pro Norte, lembrava-se de como respondera às advertências maternas, feitas em razão de outras sentidas perdas que já tivera, os filhos, aos poucos, debandando para aquelas lonjuras do Sul, lugares tão distantes, de onde sequer notícias lhe chegavam. Isso era o pior de tudo. Por onde andariam os filhos? Viveriam ainda? Para Valdemar, todavia, nada de mal haveria de acontecer-lhe. Tornar-se-ia, como tantos que estavam partindo para a guerra, igualmente um soldado, “soldado da borracha”, como oficialmente eram chamados quantos demandavam os distantes seringais para a extração do precioso látex, indispensável ao fabrico de inúmeros artefatos de guerra. Que mais honrado lhe poderia acontecer?

Até carteirinha de identidade receberia, documento que jamais conhecera, mas de cuja serventia, também, nunca necessitara. Ganharia fama e dinheiro, sem correr o risco de morrer atravessado por uma bala de fuzil ou estraçalhado por fragmentos de granada, sem falar no perigo das destruidoras bombas que haveriam de cair dos aviões inimigos. Sabia muito bem que outro não seria o fim de muitos que estavam partindo para a guerra. Então não eram essas as notícias que corriam de boca em boca, ouvidas diariamente no rádio da prefeitura?

Era, assim, definitiva a decisão de Valdemar. Extremamente motivado pela campanha de aliciamento que então se fazia, chegava a orgulhar-se de ser mais um soldado a lutar, participando do grande esforço de guerra que então se fazia com o propósito de vencer as diabólicas forças que ameaçavam o mundo. Por tudo isso, iria. Sim, iria. Que risco haveria de correr? Mais tarde, na velhice, se necessário, teria até como provar sua condição de herói daquela guerra que tanto abalo causava à humanidade. Além do mais, se sorte não lhe faltasse, poderia ganhar dinheiro e voltar rico ou bem remediado aos pagos da infância, como sabia ter acontecido a muitos que, alguns anos antes, fugindo do rigor das secas, haviam escolhido a Amazônia como suporte maior de um promissor amanhã. Seus assentamentos constariam de sua emblemática carteira que, além de registrar seus dados pessoais, indicaria o ânimo de luta que tivera, para orgulho de seus conterrâneos e de quantos filhos viesse a ter. Poderia, até mesmo, como a tantos nordestinos acontecera, chegar à condição tão desejada de patrão, dono de seringais, senhor de um mundão de terras, mais um coronel, enfim.

Fora esse o sonho de Valdemar. Sua grande saída, não tinha a menor dúvida, era a borracha, produto, aliás, do qual pouco sabia e que jamais vira de perto, a não ser o que diziam ser a parte superior dos lápis com que, na infância, apagava no caderno os erros que a professora mandava corrigir.

Ah! Quanta ilusão passeou pela cabeça de Valdemar a partir das informações constantes dos coloridos cartazes, enganosa estratégia que o atraíra, definitivamente, ao processo de produção do tão desejado látex. Como admitir fosse mentira o que tanto chegou a ser oficialmente apregoado? Igualmente, jamais chegara a imaginar que, passado o tempo e terminada a guerra, cessaria também a atividade a que se dera com tanto entusiasmo.

Assim, de uma hora para outra, perdido e isolado naquele mundo verde e, sobretudo, hostil, nem chegara a se dar conta de que o tempo passara e que a pouco e pouco aquele estranho mal que o atingira fora se agravando, até prostrá-lo de vez, tornando-o um ser inútil, sem qualquer serventia. Isso, sem falar na estranha e incômoda fraqueza que lhe bambeava as pernas em constantes tremores, enfermidade que diziam ser beribéri ou coisa parecida. Nem sabia também quantas vezes a malária o deixara sem poder sair pro corte, o corpo moído, aquele frio de fazer tremer a própria alma. E que dizer da conta no barracão, o débito crescendo a cada dia, a ponto de lhe negarem até o de comer? Nada pior, porém, que aquela dor a arrancar lá de dentro, da alma e do corpo, o estranho e horripilante grito, após incontáveis e incômodos gemidos, um após outro, gemidos que, de algum modo, amorteciam um pouco a terrível impressão de que algo lhe destroçava as entranhas.

— Sossega, homem! Toma este chá – muitas vezes lhe dissera a mulher, ao tempo em que lhe dava a beber morno cozimento de cascas de pau d´arco e de folhas de carajuru, além de raízes e outras folhas colhidas na floresta, receita que prescrevera o curador, único socorro que costumava acudir quem de socorro carecesse por aquelas brenhas. Nada, porém, nem reza nem promessa, fora capaz de, pelo menos, mitigar-lhe o sofrimento.

Exatamente na noite em que fizera ecoar aquele pavoroso grito, fazendo calar a bicharada noturna da floresta, bem longe dali outros gritos também se fizeram ouvir mundo afora. Esses, entretanto, eram gritos de euforia, na tão esperada comemoração da vitória. A partir daquele dia, não mais haveria dor. Tampouco a morte amedrontaria os que tanto haviam lutado. Acabara-se a guerra. A paz, finalmente, fora alcançada, e o mal, por fim, vencido. Para tanto, quantas mortes foram necessárias? Mas, entre elas, ninguém cogitou de computar a morte de Valdemar, número simplesmente esquecido, que nem sequer chegou a constar do rol dos que lutaram, como lutou ele e quantos, iguais a ele, na condição de seringueiros, soldados da borracha, perderam a vida nos mais distantes e agrestes seringais. De que lhe valera a caderneta que guardara com tanto zelo? Valdemar, na verdade, nada mais fora além de um simples número. Número errado, que não chegara a expressar qualquer valor, por isso que apagado pela enorme borracha da indiferença e do esquecimento.

Onde a vida se cumpria sem qualquer problema, sons de heroicos dobrados animavam os corações, num tributo aos heróis da guerra que, sobre aplausos intermináveis, desfilavam garbosos.

Francisco Vasconcelos – Amazonense de Coari, transferiu-se para Manaus ainda adolescente. Foi presidente do Clube da Madrugada (1964/65) e pertence à Academia Amazonense de Letras. Publicou os seguintes livros: O palhaço e a rosa (contos), Regime das águas (novela), Casa ameaçada (memória), Meus barcos de papel (crônicas), Coari – um retorno às origens (memória) e O menino e o velho (novela).

Coari

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3 comentários em “O Soldado da Borracha”

  1. É valoroso resgatarmos as histórias e memórias esquecidas de nossos antepassados que lutaram como bons soldados para a tão sonhada pátria amada Amazônia.

  2. Gil (Galáxia Internet)

    Bonito texto…
    Convivi com muitos “soldados da borracha”, meu pai era um deles. Pré requisito pra ser soldado da borracha: ter “cortado seringa” durante o período da 2° guerra (1939 – 1945). Recompensa por tal bravura: 2 salários minimo pago ao seringueiro de forma vitalícia com direito a uma justa indenização trabalhista paga na década de 2000.
    Bonito era ouvir as estórias, seres humanos “brutos” nos serviços pesados. Guerreiros! Pau pra toda obra. 👏👏👏👏

  3. O episódio da vida dos nordestinos nos seringais da Amazônia, durante a segunda guerra mundial, tem tanto de aventura quanto de tragédia. Na obra Amazônia, de Márcio Sousa, transformada em série global, vemos um realismo sobre a vida desses elementos que vieram para o Norte, tanto no final do século XIX quanto nos anos 40 do século XIX. Vasconcelos bem demonstra em suas letras a angústia desses homens. No YouTube há a mini série global postada, com todos os episódios. Vale a pena ver de novo.

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