Conto de Erasmo Linhares
Decalcomania. Muito natural. Todo homem sério e importante é vulnerável às manias – seja de coelhos, rosas, cães de raça, cachimbos ou mulheres, que é mania recomendável embora dispendiosa. E não era ele um homem importante e sério? Ou melhor, não iria sê-lo?
Aliás, isso foi só no começo. Um homem assim, quando menos, deve nomear algumas coisas em inglês. Por isso a mania passou a ser chamada hobby, não sem uma consulta prévia e convenientemente velada a padre Dalton, à hora do almoço, quando o pároco, sozinho na igreja, consumia suas horas de sesta.
– Mania ou hobby a coisa não mudou de aspecto – figurinhas e figurinhas –, homens, camelos, tirolesas, vedetes de biquíni, santos, bailarinas, tudo enchendo álbuns e cadernos e, na falta destes, o volumoso livro de receitas de dona Marieta, presente de aniversário dado por uma caríssima amiga. Coisinha de nada, afinal, já que Acácio seria um homem importante. Teria de ser gente, como repetia à paciência inesgotável de dona Marieta que, se algumas vezes se lamentava, não deixava outras tantas de sentir-se lisonjeada com a ideia de possuir um marido importante e respeitado. Esforçava-se. Esmerava na lavagem e no ferro, para a satisfação quase sensual de admirar o seu homem, empertigado e brilhante no terno de brim impecavelmente engomado, subir no estribo do bonde, teso como um poste.
Acácio jamais sentava – medida resultante das variadas experiências para não amarrotar a roupa até à entrada triunfal de todos os dias na Coletoria de Rendas.
Terceiro Arquivista Padrão “C”, era verdade. Vencimento minguado, atrasado de dois meses e distribuído criteriosamente entre o padeiro, o Joaquim da mercearia e outros compromissos inadiáveis, de modo a sobrar para as figurinhas coloridas, o cigarro filter de luxe, o conhaque velhíssimo e, às vezes, para o joguinho de cartas. Homem importante fuma cigarros filter de luxe, bebe conhaque envelhecido oitenta anos em tonéis de carvalho e joga cartas.
Filhos? Graças a Deus só tinham o Joca, mas isso porque as medidas de precaução se multiplicavam. Cuidados especiais, malabarismos inventados com paciência e resignação, não sem queixas de dona Marieta, para quem cabia, na grande maioria das vezes, a tarefa de ficar no meio do caminho.
Clube. Homem importante tem clube. É membro da diretoria. Pif-paf, bacará, carteado no sossego, sem os inconvenientes da vigilância policial. Festas, danças. As danças. Não foi fácil. O Tâmisa-Clube, de gente rica – fica não fica, entra não entra. Não ficou nem entrou. Onde estavam os fundos? Terceiro Arquivista Padrão “C”, marido de dona Marieta, mulher esquiva às modas elegantes, não fuma nem bebe uísque, não faz regime para emagrecer e nunca fez plástica na vida. Como então ser admitido no Tâmisa?
Mas, se não o aceitou o Tâmisa, aceitou-o de bom grado a Soberana Sociedade Recreativa, Cultural e Esportiva Unidos do Bom Retiro, entidade de velhas e gloriosas tradições e detentora do honroso título de bicampeã suburbana de dama e dominó.
Está começando, Acácio, você vai longe homem. Já secretário da Sociedade. Você vai longe homem. Dona Marieta torcendo pelo marido, feliz da vida.
E ia mesmo. Promessas, algumas vezes se cumprem. Então o deputado Dr. Fulgêncio do Valle e Silva, líder de bancada e figurão do Governo, não era primo em terceiro grau?
– Acácio, você vai ser Arquivista padrão “L”. “L”, Acácio.
Custou um pouco, mas saiu. Num dia inesperado o Diário Oficial publicou num cantinho de página que logo passou a ocupar o lugar mais destacado do maior e mais novo livro de figurinhas:
“Nomeando Acácio Leite Busão para exercer, efetivamente, de acordo com o Art 32, da Lei n.° 121, de 29 de fevereiro de 1944, combinado com o Art. 15, da Lei n.° 437, de 11 de março de 1948, o cargo de Arquivista padrão “L” do quadro permanente do Poder Executivo, lotado na Coletoria de Rendas da capital”.
– Combinado com o artigo 15 – até o Joca já sabia decorado.
Naquela noite dona Marieta não parava. O ferro corria espalhando a goma de estearina no temo de brim branco – para frente, para trás, forcejando para baixo, assoprando no fundo quando o diabo do ferro esfriava.
Meia–noite, lá estava o temo luzindo na cruzeta. Com ele, no outro dia, Acácio iria à Secretaria do Interior assinar o termo de posse.
Homem importante, aquele Acácio. Notava-se pelos ares superiores quando, empertigado, subiu no estribo do bonde e acenou jogando um beijo na direção da janela onde dona Marieta sorria, feliz e sensual.
Custava o Acácio. Almoço pronto, uma hora da tarde. Naturalmente os amigos em algum festejo. Também era justo. Arquivista padrão “L”. Paciência.
Telefone na padaria:
– Dona Marieta, telefone pra senhora.
O coração bateu forte contra o peito. Um friozinho escorreu da cabeça aos pés. Saiu correndo – Meu Deus, quem será a esta hora?
– Alô, é dona Marieta Costa Busão?
– É.
– Aqui é da polícia.
– Polícia? Que foi que eu fiz?
– A senhora não fez nada, o seu marido é que morreu no desastre de bonde da rua Tamandaré. Quarenta e oito pessoas ao todo. O maior desastre da história deste país.
Quem a socorreu foi o Totonho, caixeiro da padaria – afinal a tinha nos braços.
No outro dia os jornais publicavam a fotografia de Acácio e contavam coisas que ele nunca fez nem pensou.
Dona Marieta, chorando ainda, recortou o clichê com a tesoura de costura e pregou–o na capa do maior livro de figurinhas. Lia e relia a notícia e balançava a cabeça sobre a página.
– Homem importante, esse Acácio.